Nada durante o caminho prendeu a atenção de Leonardo. Aquela
agonia fazia ele se irritar mais do que o costume, passando de propósito por
alguns sinais vermelhos.
Ele precisou tomar um grande gole
de café do seu velho copo térmico azul antes de tatear o banco do passageiro
para alcançar de novo o celular. Os números eram digitados com pressa por
dividir a atenção no trânsito. Chamando, chamando e nada. Só lhe restou a caixa
postal.
"Camila, onde você está?
Quando pegar essa mensagem me ligue de volta.". Tentou disfarçar o
nervosismo na mensagem, mas Camila saberia que era pura enganação. Mais um gole
do café antes de estacionar o carro em fila dupla e descer do seu carro Corsa
preto, que não devia ver uma lavagem há anos.
Leonardo saiu do carro, respirou
fundo e colocou sua jaqueta antes de acender um cigarro e caminhar até a faixa
de isolamento onde se agrupava cinco policias e três viaturas. Um deles, o mais
gordo e desengonçado correu na direção de Leonardo para lhe ajudar a puxar a
fita e liberar a passagem.
"Ferdinand, me atualiza do que
está acontecendo.". Ambos continuaram a caminhar em direção a muvuca
enquanto o gordo policial procurava seu bloco de notas. "Bom, Detetive
Callomary, o que temos por enquanto é que foi um homicídio. Descartamos a
possibilidade de suicídio pelo fato da vítima estar..."
"Isso eu sei Ferdinand! Caso
contrário não teriam me chamado e sim a porra do IML! Eu quero saber da vítima,
estado em que ela se encontra vestígios..." Os olhos de Leonardo saltaram
e o pescoço ficou avermelhado de raiva. Ferdinand começou a gaguejar e foi
apenas isso que fez durante longos dez segundos. Leonardo tragou o cigarro para
tentar se acalmar e desabafou em uma avalanche de fumaça "Desculpe
Ferdinand, eu explodi de novo, é que minha filha não dá notícias e... Esquece,
vou procurar o sargento lá em cima.".
Ferdinand continuou a gaguejar
enquanto Leonardo o deixava sozinho e andava até o prédio velho. O terceiro
andar parecia ser mais longe do que em um prédio normal, talvez fosse por causa
das escadas e não ter elevador. Eram poucos os vizinhos curiosos, a maioria
deveria ser de drogados inconscientes que não perceberam a presença da polícia.
Aquele bairro no Centro de São Paulo era infestado de pessoas dependentes de
droga que não tinham para onde ir. Leonardo voltou a pegar o celular para ver
se havia nova mensagem, mas teve outra frustração.
Ao
chegar ao andar, mais três policiais estavam na porta do apartamento e logo deram
passagem para o detetive entrar. Estava praticamente vazio o local se não fosse
um sofá todo rasgado e muito lixo no chão. As paredes estavam descascadas e
pichadas. Um senhor de terno, alto e esguio, observava dois fotógrafos da
perícia que tiravam fotos de todos os cantos do apartamento.
"Ilumine-me Hugo. O que
aconteceu aqui?" Leonardo deu a última tragada no cigarro antes de jogá-lo
no chão e parar ao lado do senhor.
Sargento Hugo virou-se para o
detetive coçando a cabeça calva e grisalha. "Mulher, por volta de vinte ou
vinte cinco anos. Nenhum documento, nada. O corpo deve estar aqui neste
apartamento há algumas semanas. Os vizinhos se incomodaram com o cheiro e nos
chamaram"
“Pelo menos você já chamou
a Polícia Científica e não deixou seus homens impregnarem o lugar.”
“Não cuspa no prato que já
comeu Leonardo. Você já foi da Polícia antes de seguir carreira... solo.”
Baixando-se, Callomary
olhou o chão todo arranhado. “E mesmo assim, vocês insistem em me chamar quando
não conseguem resolver as coisas.”
“Você pode ter suas
loucuras, mas sabe o que faz garoto.”
Callamary abriu um sorriso
sarcástico e levantou-se. “Depois de toda essa bajulação você vai me convidar
pra jantar ou tudo isso é só para eu resolver o seu caso e limpar sua barra?”
“Imagino que você prefira
comer suas comidas congeladas hoje em dia.”
O detetive deu uma leve
risada e olhou para o antigo amigo. “Hugo, eu não quero mais me envolver com
crime, por isso preferi ajudar esposas traídas e procurar cachorros
desaparecidos.”
“Eu sei Leo, mas se eu não
precisasse de sua ajuda não teria chamado. Isso é... fora de tudo o que jamais
presenciamos. E eu tenho certeza que a Polícia poderá de dar uma boa
gratificação. Está precisando de dinheiro e não adianta negar. Você sabe que
posso fazer que a Tesouraria da Polícia lhe de uma recompensa maior do que a de
costume.”
Leonardo desviou o olhar, estalou o
pescoço e adentrou ao quarto escuro acompanhado do sargento. "De quem é o
apartamento?"
"De um tal de Gustavo Vargas,
um aposentado.".
"E onde está Vargas?" Sem
sucesso com o interruptor, Leonardo apelou para a lanterna do celular.
"Morto há vinte anos. Sem
sucessores, o local ficou jogado as traças para viciados e mendigos.".
“Como eu amo o judiciário
e sua burocracia.” Sarcasticamente Leonardo falou iluminado o ambiente.
A luz do celular fixou-se ao chão e
a expressão de Leonardo mudou de instigado para impressionado. O corpo já
estava em decomposição, encostado na parede e de pernas esticadas com os pulsos
presos em duas longas correntes enferrujadas, mas a jovem loira usava um
vestido longo azul escuro, lindo e brilhante. O cabelo estava meticulosamente
penteado e preso em uma tiara de falsos diamantes e um coque, mas o que chocara
era outra coisa.
Primeiramente o rosto estava
literalmente amassado por algo que havia lhe acertado diversas vezes. Provavelmente
muito pesado. A parte abdominal da vítima também havia sido esmagada e ao lado
do corpo uma enorme abóbora de aço maciço, meticulosamente colocada ao lado do
corpo. Os pés da moça haviam sido cortados e estavam cuidadosamente colocados
do outro lado do corpo e ambos fincados com inúmeros pedaços de vidro. Dezenas
de ratos se alimentavam da carne podre do cadáver e grandes pedaços de vidros
estavam enfiados também nos olhos da jovem.
"Mas que merda é essa?"
Leonardo Callomary olhava abismado para a cena enquanto Hugo roubava um cigarro
do maço do detetive.
"Ainda não sabemos o motivo,
mas já vinculamos com o caso da jovem que foi torturada, morta com uma maçã na
goela.”
“Eu vi esse caso nos
noticiários mês passado.” Leonardo ainda encarava a jovem morta, incrédulo.
“Chamamos o primeiro caso
de Branca de Neve. Depois encontramos o coração da moça dentro de uma caixa de
ferro que foi deixado na frente da nossa delegacia mês passado. As câmeras só
registraram um homem encapuzado deixando a caixinha rapidamente nas escadarias."
“A primeira vítima foi
encontrada aonde?”
“Um apartamento semelhante
a esse, mas na Zona Leste da cidade.”
"Já identificaram o homem
encapuzado que o deixou a caixa?"
"Ainda não..." Hugo
acendeu o cigarro “... as câmeras de outros imóveis o seguiram até o festival
de música naquele final de semana e depois o perdemos na multidão.”.
“Quem era a primeira
garota?”
Hugo pegou sua caderneta,
folheou algumas páginas e tragou o cigarro. “Yara Fagundes. Uma agente de
publicidade. O noivo que fez o B.O do desaparecimento dela. Uma semana depois a
encontramos.”
“Suspeito de algo nele?”
“Por enquanto não.” Hugo
guardou a caderneta. “O melhor está por vir, Leo. A garota da sua frente é a
atriz Pamela Schmitt.”
“O quê? Você está de
brincadeira comigo! A da novela?”
“A própria. A emissora da
novela não quis dizer as autoridades que a atriz havia sumido das gravações
havia uma semana, com medo de perderem audiência. Pediram para a família não ir
a público também, pois colocariam detetives particulares para busca-la. Mas a
madrasta da jovem teve sua filha do primeiro casamento desaparecida também e
não conseguiu suportar. Quatro dias depois de vir falar conosco recebeu um
enorme jarro de barro com, pasme, carne ensopada no portão de sua casa. Ao
fundo havia um crânio. Os exames de DNA revelaram que era da filha da madrasta.
E agora isso...”
Leonardo ficou tonto com
tanta atrocidade. “Eu não gostava daquela porcaria de novela, mas...Deus! Já
avisaram a família que encontraram Pamela?”
“Não temos total certeza
de ser ela, por isso ainda não. Mas todas as características estão batendo”.
O detetive aproximou-se do corpo e
tentou afastar alguns ratos com chutes.
"O vestido é bem cuidado, foi lavado
para tirar as manchas de sangue, mas não completamente, então descarte a ideia
de ter sido colocado após a morte dela. Os cacos de vidro nos olhos..."
Leonardo quase encostou seu rosto ao da jovem "....tem restos de sangue
escorridos. Sem cortes nos contornos da cavidade. Foram furados depois."
“E os pés?”
"A coisa foi mais planejada.
Olhe-os! Foram cerrados na altura certa e o toco das pernas foram cuidados. Não
tem sinais de sangramento na ferida, possivelmente isso foi feito após a morte
dela também. Esse louco parece curtir fazer uma cena chocante com suas vítimas.".
“Chegamos a conclusão que
este apartamento não foi o local da morte. Apenas é o palco desse maníaco, pois
não há vestígios de nada por aqui. Idêntico ao caso Branca de Neve.”
Leonardo suspirou e coçou
a barba. “Algum vizinho viu algo suspeito?”
“Esses drogados? Se viram,
não irão falar nada para não criarem problemas para eles mesmos.”
“Ratos!”
“Concordo, são uns
malditos ratos!” Hugo olhava o corpo com repulsa.
"Não! Os ratos! Não
são ratos de esgoto. São maiores e, pelo jeito, também famintos. Foram
colocados de propósito aqui. Sem mencionar os pés colocados naquele canto
cuidadosamente."
"Eles também estão sem os
calcanhares, mas enfim... Esse filho da puta fez um enorme cenário teatral aqui.".
“Agora entende o porquê de
querermos você aqui, Leonardo?”
Callamary levantou-se e seguiu
para a porta. “Você poderia ter me esquecido dessa vez Sargento.”
Ambos saíram do quarto e Leonardo
olhou Hugo. "Eu nunca vi algo assim. Pelo menos não tão... planejado.".
"Quarenta anos na polícia e
nem eu, Leo. Quando eu tiver alguma notícia eu volto a lhe informar, mas não se
preocupe muito com isso. Eu pedi pra te chamarem em último caso, mas não me
deram bola...".
"Não se preocupe Hugo. Eu imagino
que deve ter evitado ao máximo. Vou ver se encontro alguma semelhança com
outros crimes, além do da Branca de Neve."
"Confio em você, meu amigo.
Você era um dos nossos melhores."
"Duas mentiras em uma única
frase Hugo. Fica feio um Sargento mentir assim."
Hugo sorriu e pousou a mão no
ombro magro de Leonardo. "E Camila, como está?"
"Sumida, de novo..."
Leonardo suspirou preocupado. "Adolescentes são piores que assassinos para
se encontrarem."
Hugo deu uma leve risada.
"Posso acionar uma patrulha, se quiser.".
"Não precisa. Daqui a pouco
ela deve dar notícia de vida.". Leonardo passou a mão na nuca e deu as costas
para o velho amigo.
"Não pegue pesado com a garota
Leo! Lembre-se que você já foi um moleque de dezenove anos.".
"Exatamente Hugo! Eu já fui um
filho da puta desses e sei o que fazíamos com garotas dessa idade também!"
Leonardo deixou o lugar arrumando a
jaqueta e contando os segundos para voltar ao carro e dar mais um grande gole
no seu café frio.
Entrou no carro e virou o
café do copo térmico até a última gota. Arriscou mais uma olhada no celular
esperançoso de ter notícias da filha, mas a garota realmente era um desapontamento.
Pegou
seu bloco de notas e escreveu na primeira folha em branco. “Caso Cinderela” e
riscou uma linha embaixo. Mais uma manhã de merda na sua vida, e este já tinha
lhe embrulhado o estômago.
André Bludeni
Você quer saber o que aconteceu antes? Entre nos links abaixo!
Branca de Neve

Nenhum comentário:
Postar um comentário