quarta-feira, 20 de abril de 2016

Cinderela Part.2 (+18)

 Nada durante o caminho prendeu a atenção de Leonardo. Aquela agonia fazia ele se irritar mais do que o costume, passando de propósito por alguns sinais vermelhos.

  Ele precisou tomar um grande gole de café do seu velho copo térmico azul antes de tatear o banco do passageiro para alcançar de novo o celular. Os números eram digitados com pressa por dividir a atenção no trânsito. Chamando, chamando e nada. Só lhe restou a caixa postal.

  "Camila, onde você está? Quando pegar essa mensagem me ligue de volta.". Tentou disfarçar o nervosismo na mensagem, mas Camila saberia que era pura enganação. Mais um gole do café antes de estacionar o carro em fila dupla e descer do seu carro Corsa preto, que não devia ver uma lavagem há anos.

  Leonardo saiu do carro, respirou fundo e colocou sua jaqueta antes de acender um cigarro e caminhar até a faixa de isolamento onde se agrupava cinco policias e três viaturas. Um deles, o mais gordo e desengonçado correu na direção de Leonardo para lhe ajudar a puxar a fita e liberar a passagem.

  "Ferdinand, me atualiza do que está acontecendo.". Ambos continuaram a caminhar em direção a muvuca enquanto o gordo policial procurava seu bloco de notas. "Bom, Detetive Callomary, o que temos por enquanto é que foi um homicídio. Descartamos a possibilidade de suicídio pelo fato da vítima estar..."

  "Isso eu sei Ferdinand! Caso contrário não teriam me chamado e sim a porra do IML! Eu quero saber da vítima, estado em que ela se encontra vestígios..." Os olhos de Leonardo saltaram e o pescoço ficou avermelhado de raiva. Ferdinand começou a gaguejar e foi apenas isso que fez durante longos dez segundos. Leonardo tragou o cigarro para tentar se acalmar e desabafou em uma avalanche de fumaça "Desculpe Ferdinand, eu explodi de novo, é que minha filha não dá notícias e... Esquece, vou procurar o sargento lá em cima.".

  Ferdinand continuou a gaguejar enquanto Leonardo o deixava sozinho e andava até o prédio velho. O terceiro andar parecia ser mais longe do que em um prédio normal, talvez fosse por causa das escadas e não ter elevador. Eram poucos os vizinhos curiosos, a maioria deveria ser de drogados inconscientes que não perceberam a presença da polícia. Aquele bairro no Centro de São Paulo era infestado de pessoas dependentes de droga que não tinham para onde ir. Leonardo voltou a pegar o celular para ver se havia nova mensagem, mas teve outra frustração.

  Ao chegar ao andar, mais três policiais estavam na porta do apartamento e logo deram passagem para o detetive entrar. Estava praticamente vazio o local se não fosse um sofá todo rasgado e muito lixo no chão. As paredes estavam descascadas e pichadas. Um senhor de terno, alto e esguio, observava dois fotógrafos da perícia que tiravam fotos de todos os cantos do apartamento.

  "Ilumine-me Hugo. O que aconteceu aqui?" Leonardo deu a última tragada no cigarro antes de jogá-lo no chão e parar ao lado do senhor.

  Sargento Hugo virou-se para o detetive coçando a cabeça calva e grisalha. "Mulher, por volta de vinte ou vinte cinco anos. Nenhum documento, nada. O corpo deve estar aqui neste apartamento há algumas semanas. Os vizinhos se incomodaram com o cheiro e nos chamaram"

 “Pelo menos você já chamou a Polícia Científica e não deixou seus homens impregnarem o lugar.”

  “Não cuspa no prato que já comeu Leonardo. Você já foi da Polícia antes de seguir carreira... solo.”

  Baixando-se, Callomary olhou o chão todo arranhado. “E mesmo assim, vocês insistem em me chamar quando não conseguem resolver as coisas.”

  “Você pode ter suas loucuras, mas sabe o que faz garoto.”

  Callamary abriu um sorriso sarcástico e levantou-se. “Depois de toda essa bajulação você vai me convidar pra jantar ou tudo isso é só para eu resolver o seu caso e limpar sua barra?”

  “Imagino que você prefira comer suas comidas congeladas hoje em dia.”

  O detetive deu uma leve risada e olhou para o antigo amigo. “Hugo, eu não quero mais me envolver com crime, por isso preferi ajudar esposas traídas e procurar cachorros desaparecidos.”

  “Eu sei Leo, mas se eu não precisasse de sua ajuda não teria chamado. Isso é... fora de tudo o que jamais presenciamos. E eu tenho certeza que a Polícia poderá de dar uma boa gratificação. Está precisando de dinheiro e não adianta negar. Você sabe que posso fazer que a Tesouraria da Polícia lhe de uma recompensa maior do que a de costume.”

  Leonardo desviou o olhar, estalou o pescoço e adentrou ao quarto escuro acompanhado do sargento. "De quem é o apartamento?"

  "De um tal de Gustavo Vargas, um aposentado.".

  "E onde está Vargas?" Sem sucesso com o interruptor, Leonardo apelou para a lanterna do celular.

  "Morto há vinte anos. Sem sucessores, o local ficou jogado as traças para viciados e mendigos.".

  “Como eu amo o judiciário e sua burocracia.” Sarcasticamente Leonardo falou iluminado o ambiente.

  A luz do celular fixou-se ao chão e a expressão de Leonardo mudou de instigado para impressionado. O corpo já estava em decomposição, encostado na parede e de pernas esticadas com os pulsos presos em duas longas correntes enferrujadas, mas a jovem loira usava um vestido longo azul escuro, lindo e brilhante. O cabelo estava meticulosamente penteado e preso em uma tiara de falsos diamantes e um coque, mas o que chocara era outra coisa.

  Primeiramente o rosto estava literalmente amassado por algo que havia lhe acertado diversas vezes. Provavelmente muito pesado. A parte abdominal da vítima também havia sido esmagada e ao lado do corpo uma enorme abóbora de aço maciço, meticulosamente colocada ao lado do corpo. Os pés da moça haviam sido cortados e estavam cuidadosamente colocados do outro lado do corpo e ambos fincados com inúmeros pedaços de vidro. Dezenas de ratos se alimentavam da carne podre do cadáver e grandes pedaços de vidros estavam enfiados também nos olhos da jovem.

  "Mas que merda é essa?" Leonardo Callomary olhava abismado para a cena enquanto Hugo roubava um cigarro do maço do detetive.

  "Ainda não sabemos o motivo, mas já vinculamos com o caso da jovem que foi torturada, morta com uma maçã na goela.”

  “Eu vi esse caso nos noticiários mês passado.” Leonardo ainda encarava a jovem morta, incrédulo.

  “Chamamos o primeiro caso de Branca de Neve. Depois encontramos o coração da moça dentro de uma caixa de ferro que foi deixado na frente da nossa delegacia mês passado. As câmeras só registraram um homem encapuzado deixando a caixinha rapidamente nas escadarias."

  “A primeira vítima foi encontrada aonde?”

  “Um apartamento semelhante a esse, mas na Zona Leste da cidade.”

 "Já identificaram o homem encapuzado que o deixou a caixa?"

  "Ainda não..." Hugo acendeu o cigarro “... as câmeras de outros imóveis o seguiram até o festival de música naquele final de semana e depois o perdemos na multidão.”.

  “Quem era a primeira garota?”

  Hugo pegou sua caderneta, folheou algumas páginas e tragou o cigarro. “Yara Fagundes. Uma agente de publicidade. O noivo que fez o B.O do desaparecimento dela. Uma semana depois a encontramos.”

  “Suspeito de algo nele?”

  “Por enquanto não.” Hugo guardou a caderneta. “O melhor está por vir, Leo. A garota da sua frente é a atriz Pamela Schmitt.”

  “O quê? Você está de brincadeira comigo! A da novela?”

  “A própria. A emissora da novela não quis dizer as autoridades que a atriz havia sumido das gravações havia uma semana, com medo de perderem audiência. Pediram para a família não ir a público também, pois colocariam detetives particulares para busca-la. Mas a madrasta da jovem teve sua filha do primeiro casamento desaparecida também e não conseguiu suportar. Quatro dias depois de vir falar conosco recebeu um enorme jarro de barro com, pasme, carne ensopada no portão de sua casa. Ao fundo havia um crânio. Os exames de DNA revelaram que era da filha da madrasta. E agora isso...”

  Leonardo ficou tonto com tanta atrocidade. “Eu não gostava daquela porcaria de novela, mas...Deus! Já avisaram a família que encontraram Pamela?”

  “Não temos total certeza de ser ela, por isso ainda não. Mas todas as características estão batendo”.

  O detetive aproximou-se do corpo e tentou afastar alguns ratos com chutes.

  "O vestido é bem cuidado, foi lavado para tirar as manchas de sangue, mas não completamente, então descarte a ideia de ter sido colocado após a morte dela. Os cacos de vidro nos olhos..." Leonardo quase encostou seu rosto ao da jovem "....tem restos de sangue escorridos. Sem cortes nos contornos da cavidade. Foram furados depois."

  “E os pés?”

  "A coisa foi mais planejada. Olhe-os! Foram cerrados na altura certa e o toco das pernas foram cuidados. Não tem sinais de sangramento na ferida, possivelmente isso foi feito após a morte dela também. Esse louco parece curtir fazer uma cena chocante com suas vítimas.".

  “Chegamos a conclusão que este apartamento não foi o local da morte. Apenas é o palco desse maníaco, pois não há vestígios de nada por aqui. Idêntico ao caso Branca de Neve.”
  Leonardo suspirou e coçou a barba. “Algum vizinho viu algo suspeito?”

  “Esses drogados? Se viram, não irão falar nada para não criarem problemas para eles mesmos.”

  “Ratos!”

  “Concordo, são uns malditos ratos!” Hugo olhava o corpo com repulsa.

 "Não! Os ratos! Não são ratos de esgoto. São maiores e, pelo jeito, também famintos. Foram colocados de propósito aqui. Sem mencionar os pés colocados naquele canto cuidadosamente."

 "Eles também estão sem os calcanhares, mas enfim... Esse filho da puta fez um enorme cenário teatral aqui.".

  “Agora entende o porquê de querermos você aqui, Leonardo?”

 Callamary levantou-se e seguiu para a porta. “Você poderia ter me esquecido dessa vez Sargento.”

  Ambos saíram do quarto e Leonardo olhou Hugo. "Eu nunca vi algo assim. Pelo menos não tão... planejado.".

  "Quarenta anos na polícia e nem eu, Leo. Quando eu tiver alguma notícia eu volto a lhe informar, mas não se preocupe muito com isso. Eu pedi pra te chamarem em último caso, mas não me deram bola...".

  "Não se preocupe Hugo. Eu imagino que deve ter evitado ao máximo. Vou ver se encontro alguma semelhança com outros crimes, além do da Branca de Neve."

  "Confio em você, meu amigo. Você era um dos nossos melhores."

  "Duas mentiras em uma única frase Hugo. Fica feio um Sargento mentir assim."

   Hugo sorriu e pousou a mão no ombro magro de Leonardo. "E Camila, como está?"

  "Sumida, de novo..." Leonardo suspirou preocupado. "Adolescentes são piores que assassinos para se encontrarem."

  Hugo deu uma leve risada. "Posso acionar uma patrulha, se quiser.".

  "Não precisa. Daqui a pouco ela deve dar notícia de vida.". Leonardo passou a mão na nuca e deu as costas para o velho amigo.

  "Não pegue pesado com a garota Leo! Lembre-se que você já foi um moleque de dezenove anos.".

  "Exatamente Hugo! Eu já fui um filho da puta desses e sei o que fazíamos com garotas dessa idade também!"

  Leonardo deixou o lugar arrumando a jaqueta e contando os segundos para voltar ao carro e dar mais um grande gole no seu café frio.

  Entrou no carro e virou o café do copo térmico até a última gota. Arriscou mais uma olhada no celular esperançoso de ter notícias da filha, mas a garota realmente era um desapontamento.

  Pegou seu bloco de notas e escreveu na primeira folha em branco. “Caso Cinderela” e riscou uma linha embaixo. Mais uma manhã de merda na sua vida, e este já tinha lhe embrulhado o estômago.





André Bludeni



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Branca de Neve



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