Os lampiões do
bistrô se apagaram, deixando apenas a brasa da lareira se queimar por completo. O barulho da chave trancando a pesada porta
de madeira foi o sinal de “tchau” que o pequeno espaço rústico recebeu naquela
noite fria.
O espaço não era lá
essas coisas. Todo feito em pedra, havia um par de mesas de madeira bruta
acompanhado de cadeiras no mesmo estilo que precisavam de um calço. O forno a
lenha e a bancada da cozinha estavam cheio de potes, panelas, pratos, copos e
vasilhas espalhados por todo o espaço. Mas o real charme do bistrô estava ao
fundo dele, com a grande lareira, duas poltronas velhas ( uma de couro
descascado pela idade e outra de pano com manchas de vinho) e um enorme tapete
de pele para aconchegar o lugar.
Tudo em silêncio,
tudo relativamente aquecido enquanto a nevasca caia do lado de fora e embaçava
a janela de vitral. As sombras dos livros, objetos e quadros que enfeitavam o lugar, dançavam no ritmo das pequenas
labaredas que estalavam ao fundo do bistrô ditando a música.
Mas havia uma sombra
que saia do compasso da dança. Uma sombra menor que um garfo, mas que corria
entre as outras rapidamente numa agilidade impressionante. Os desavisados
achariam que era um camundongo ou uma grande barata, mas na verdade era
Fervilho, o duende mais rápido da comunidade que vivia no subsolo do bistrô,
logo abaixo as tábuas de madeira que rangiam com qualquer peso a mais.
Fervilho era considerado
um duende atlético. Um pouco mais alto do que seus amigos, quando mais novo era
considerado um ótimo partido, mas a leve barriga da idade já se apresentara
fazia em torno de dez invernos. Ao subir no topo de um livro sobre frutos do
mar, seu rosto foi iluminado pelo fogo da lareira.
Os olhos de Fervilho
observavam todo o espaço com cautela. Qualquer coisa, seja humano ou animal,
era um predador para os duendes. As orelhas de abano escutavam cada som e o
nariz pontiagudo fungava por cheiros desconhecidos. Um leve assobio de Fervilho fez Touca, Pingado, Florida e Babbo saírem da toca
de rato e correrem na direção da bancada.
Pingado liderava o
grupo. Ganhou esse nome quando era pequeno e ficou dias tomando doses de
aguardente para provar que era o mais forte do grupo. Era baixo e bem roliço. A
barba que uma vez fora loira, agora tinha um aspecto encardido.
Ao chegar à bancada,
Pingado, com uma linha, laçou um grande pote de pepinos em conserva no topo
para poderem subir. O primeiro a escalar a enorme bancada foi Touca. Seu nome
vinha por nunca atirar a touca vermelha do topo da cabeça. Ela era de seu pai,
antes deste ser comido por um besouro. Desde então Touca começou a usar o chapéu
do pai (muito maior que seu número) e nunca mais falou com ninguém.
A segunda a subir
foi Florida. Uma linda duende loira e de olhos azuis. Suas orelhas pontudinhas
eram seu charme entre os emaranhados cabelos dourados. Adorava trocar todo dia
a flor que prendia em sua touca lilás. Poderia parecer ingênua, mas com certeza
era uma das mais espertas da comunidade e sempre tivera voz ativa.
Por último a subir
foi Babbo. Ele não tinha sido requisitado para essa missão, pois além de muito
velho para tal aventura, seu físico não ajudava, mas como um dos mais sábios e
líderes, decidiu mostrar que ainda poderia ajudar os mais novos. Seus cabelos
brancos eram bem arrumados dentro da touca pontuda vermelha. Apenas as maçãs do
rosto, bem avermelhadas eram vistas de sua face, pois o resto era coberto por
uma enorme penugem branca que ia até sua barriga bem inchada. O colete verde
parecia que iria explodir.
Todos no topo,
começaram a se dividir. Touca ficou responsável pelas carnes, logo correu
rapidamente para buscar lascas de embutidos e do grande pernil que sobrara do
jantar dos humanos. Pingado correu para os laticínios, pois não havia nenhum
duende que não gostasse de um bom queijo e leite. Florida ficou com os legumes
verduras, pois sempre pensava na saúde de todos. Já Babbo, como um bom vivant,
foi aos doces e ao vinho.
Poucos minutos se
estenderam até se encontrarem no pote de pepino novamente. Todos com as
pequenas sacolas e pequenas garrafas cheias. Foi quando Babbo percebeu:
- Onde está Fervilho?
Os duendes começaram
a olhar para todos os lados do bistrô procurando o grande amigo, mas nada, foi
quando viram um pequeno vulto correr em sua direção entre as louças. Fervilho
bufava de cansaço, todo vermelho e suado, segurando a touca, mas não deixando
de correr.
- Roquefort! Roquefort! Roquefort!
Pingado, ainda sem
entender do que se tratava, abriu sua sacola e conferiu o que tinha pego.
- Mas eu peguei
roquefort. Inclusive mais do que provolone...
Foi quando Florida
arregalou os olhos e segurou no antebraço de Pingado.
- Não é do queijo
que ele está falando, Pingado.
O enorme gato
Roquefort pulou na bancada derrubando todas as panelas no chão. A cada passo, o
gato branco e cinza lambia os lábios esfomeadamente olhando suas pequenas
presas. Os pobres duendes correram cada um para um lado.
Enquanto Babbo e
Florida corriam para se esconder atrás dos panelaços, Pingado e Fervilho
puxaram suas pequenas agulhas que usavam de espadas e correram na direção do
monstro peludo. A cada pontada nas patas de Roquefort um deles era arremessado
para longe. As luzes da lareira iluminavam uma chuva de pratos, nozes, panelas
e vinhos voaram pelos ares enquanto a batalha explodia perto do fogão à lenha.
Pingado tentou um
ataque perto do rosto de Roquefort, mas uma patada o derrubou pra dentro do
saco de arroz. Foi quando Fervilho se viu encurralado entre o pote de tomate
seco e o saco de cebolas. Roquefort avançava vagarosamente preparando o bote.
Alí acabava a história de Fervilho, o duende.
Quando Roquefort deu
o pulo para acabar com o sofrimento de Fervilho, algo aconteceu e o pequeno
duende pode abrir os olhos mais uma vez. Era Touca que havia saltado das estantes
de livro de culinária para as costas do bichano. O pequeno duende parecia um
peão de boiadeiro se segurando nos pelos do animal que se contorcia para tirar
Touca de cima dele.
Essa foi a deixa para Fervilho se levantar correr até a
ajuda de Touca. Pingado também enquanto tirava alguns grãos de arroz da roupa.
Os três duendes furavam o animal que chiava de dor e raiva até Babbo e Florida
voltarem por trás do grande animal e prenderem sua cauda embaixo de uma enorme
panela de guisado.
Roquefort miava de
raiva, puxando o rabo e tentando alcançar os cinco duendes que juntavam a
comida para fugirem o quanto antes. Um a um foram descendo pela linha do pote
de pepino. A última a descer foi Florida
que quase foi atingida por uma garrafa de vinho que vinha rolando em sua direção
pela bancada.
O longo percurso até a toca de rato foi o tempo suficiente
para Roquefort se soltar e correr atrás dos pequeninos. As cadeiras voaram por
causa do último bote de Roquefort que chegou a enfiar sua enorme pata peluda e
cheia de unhas para dentro do buraco, mas sem sucesso de alcançar nenhuma de
suas presas. Apenas a alça direita do suspensório de Babbo fora rasgada pelas
garras do bichano.
Os cinco, ofegantes,
se entreolharam por segundos em silêncio. Os olhos assustados passavam de um a
um até Touca começar a gargalhar. Os outros quatro voltaram seus olhares para
ele, ainda incrédulos, mas também caíram na gargalhada juntos do amigo mudo.
Os duendes voltaram
para sua comunidade e foram recebidos com muitas palmas, ovações e assobios,
mesmo porque o banquete para a ceia eles haviam conseguido. Agora era a hora de
festejar, comer, dançar e, claro, ouvirem mais uma aventura dos duendes do
bistrô.
Para Maria Célia de Paula Pinto Nazário, onde
quer que esteja.
André Bludeni