quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Eu quero é ser "doutô" !

  O tranco o fez acordar assustado. Quase perdeu o equilíbrio e caiu para fora da caçamba do caminhão, mas por sorte conseguiu se segurar na lona que cobria as gigantes caixas de banana que estavam sendo transportadas.

  Já estava escuro e ele não se recordava quantos dias já tinham se passado desde que pedira carona para o velho caminhoneiro no começo de sua jornada. Aliás, pouco conversou com ele. Suas trocas de palavras se resumiam em “bom dia” e “boa noite” nas paradas que faziam nos postos de gasolina ou nas ajudas que prometeu ao caminhoneiro em descarregar a carga em troca da viagem. Não existia simpatia, amizade ou preocupação entre os dois, apenas trocas de favores.

  A estrada já estava mais iluminada do que o de costume. Pelo menos tinham postes de luz e concreto de boa qualidade pelo caminho. O homem estava cansado, fraco com toda essa viagem. Sabia que não iria ser fácil, mas não imaginava que passaria tanto sufoco já no começo.

  Saiu de sua vila no interior de Manaus com cinco reais no bolso, um saco plástico com duas trocas de roupa, um pão velho e um pedaço de rapadura que sua mãe sempre fazia. Estava indo para a cidade grande, especificamente São Paulo. Iria trabalhar, estudar e virar “doutô”. Seu sonho mesmo era comprar uma moto, igual aquelas que via nas novelas da televisão pequenininha do seu tio Arlindo.

  Não estava acostumado com o clima da cidade. De onde vinha era calor o tempo todo, inseto pra todo lado, mas todo mundo sorria, mesmo se estivessem devendo algumas contas. Agora, cada vez que avançavam mais para o Sul do país, o clima esfriava e as pessoas pareciam sorrir cada vez menos. Pelo menos os carros ficavam mais bonitos.

  A cada buraco que passavam o jovem tinha que se segurar mais. Parecia que o caminhoneiro (não lembrava o nome dele. Era Jair ou Raí?) estava com pressa de chegar a sua parada final. A barriga roncava muito, sinal de que não comia fazia tempo. Ele tinha que economizar, pois o pão já acabara e a rapadura estava nas últimas mordidas. Ele deu sorte da prostituta de Goiás ter ido com a cara dele e ter pagado um pão de queijo depois de ter recebido vinte reais de seu último cliente. O salgado durou mais do que duas refeições dentro de sua sacola. Ele morria de vontade de comer as bananas que o caminhoneiro levava, mas foi avisado antes que subisse de que se faltasse sequer uma banana era “tiro na cara”. Preferiu não arriscar.

  Seu cheiro já o incomodava. Fazia muito tempo que não se banhava decentemente, mas isso iria mudar. Ele estava chegando em São Paulo. Iria ganhar dinheiro, ficar rico, virar “doutô” e comprar um chuveiro com água quente. Só a Dona Hortência tinha chuveiro quente na sua vila e ele prometeu que ia comprar uma melhor que a dela.

  Enfiou a mão na sacola para pegar o final da rapadura. Já estava esfarelando de tão velha, mas ao levar a boca não a engoliu. Algo lhe chamou a atenção que fez o jovem ficar perplexo e em choque. Primeiro foi o grande avião que passou por sua cabeça. Aquilo era coisa de outro mundo. Não imaginava que fizesse tanto barulho. Mas o que lhe chamou a atenção mesmo foi os gigantes monstros de aço iluminados.

  Os arranha-céus da Marginal fizeram o jovem do interior de Manaus ficar boquiaberto e perplexo. Eram monumentais. As maiores coisas que já viu na vida. Brilhantes, lindos, pareciam coisas de E.T.. Ele queria morar dentro de um daqueles, no andar mais alto. Queria tomar banho de água quente enquanto ficava olhando tudo lá de cima para depois andar na sua moto e ir pro “serviço de doutô”.

  Quando se deu conta, sua rapadura já tinha caído na estrada e já estavam perto do ponto final. Era muita luz, muito movimento. Pessoas e carros andavam para todos os lados. Todas muito sérias, não se cumprimentavam. Pareciam atrasadas, mesmo sendo de madrugada.

  O caminhoneiro parou o veículo em um armazém. Sem trocarem palavras mais uma vez, descarregaram a última encomenda juntos. A despedida foi um pouco mais calorosa. Um aperto de mão, um desejo de boa sorte pelo caminhoneiro e dez reais pela última ajuda. Eitá sorte boa! Já estava lucrando.

  O caminhão foi embora e ele ficou parado na estrada vendo as luzes se afastarem cada vez mais. E agora? Pegou sua sacola, arrumou o chinelo arrebentado e seguiu seu caminho por aquela “savana” de luzes, aço e gente esquisita.





  Eu poderia terminar essa história dizendo que o jovem realmente virou doutor, teve sua cobertura na parte mais nobre de São Paulo com seu chuveiro quente e uma moto de última geração, mas sabemos que isso é algo que infelizmente não acontecerá. Essa é uma história de não apenas um protagonista, mas de vários. Homens, mulheres e crianças. Alguns com pouca voz, outras com nenhuma.

  Milhares de pessoas saem de suas casas na esperança de uma melhoria de vida por causa de uma falsa imagem de que em grandes capitais terão a chance de ter sucesso. Uma parcela mínima consegue tal proeza, já o restante vivem vidas miseráveis, longe de suas famílias, sem apoio, sem para onde ir e poder voltar. Passando por empregos sub-humanos onde conseguem um sustento caótico que mal os supre. Alguns viram andarilhos em rua, sem estrutura vivendo de esmolas. Já outros encontram um destino mais mortal. Nem preciso mencionar aos que nem ao menos sobrevivem até o fim da viagem.

  E o que deve ser feito? Realmente eu não sei. Minha aposta é em um investimento total em Educação em todo o país. Esqueça a saúde, alimento e moradia. Isso virá com a consequência de uma boa educação da população. Com uma infraestrutura educacional de nível, as pessoas terão chances de desenvolvimento em seus próprios locais e assim não terão que se aventurar em cidades longe de suas casas para ter uma chance mínima de sucesso em condições precárias.


  E enfim, depois de tudo isso, vamos ter um final feliz? Eu também não sei responder. Só sei que até lá mais milhares de indivíduos virão em caçambas de caminhões e ficarão maravilhados com os arranha-céus querendo ser “doutô”.


André Bludeni

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