segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Os Duendes do Bistrô

  Os lampiões do bistrô se apagaram, deixando apenas a brasa da lareira se queimar por completo.  O barulho da chave trancando a pesada porta de madeira foi o sinal de “tchau” que o pequeno espaço rústico recebeu naquela noite fria.

  O espaço não era lá essas coisas. Todo feito em pedra, havia um par de mesas de madeira bruta acompanhado de cadeiras no mesmo estilo que precisavam de um calço. O forno a lenha e a bancada da cozinha estavam cheio de potes, panelas, pratos, copos e vasilhas espalhados por todo o espaço. Mas o real charme do bistrô estava ao fundo dele, com a grande lareira, duas poltronas velhas ( uma de couro descascado pela idade e outra de pano com manchas de vinho) e um enorme tapete de pele para aconchegar o lugar.

  Tudo em silêncio, tudo relativamente aquecido enquanto a nevasca caia do lado de fora e embaçava a janela de vitral. As sombras dos livros, objetos e quadros  que enfeitavam o lugar, dançavam no ritmo das pequenas labaredas que estalavam ao fundo do bistrô ditando a música.

  Mas havia uma sombra que saia do compasso da dança. Uma sombra menor que um garfo, mas que corria entre as outras rapidamente numa agilidade impressionante. Os desavisados achariam que era um camundongo ou uma grande barata, mas na verdade era Fervilho, o duende mais rápido da comunidade que vivia no subsolo do bistrô, logo abaixo as tábuas de madeira que rangiam com qualquer peso a mais.

  Fervilho era considerado um duende atlético. Um pouco mais alto do que seus amigos, quando mais novo era considerado um ótimo partido, mas a leve barriga da idade já se apresentara fazia em torno de dez invernos. Ao subir no topo de um livro sobre frutos do mar, seu rosto foi iluminado pelo fogo da lareira.

  Os olhos de Fervilho observavam todo o espaço com cautela. Qualquer coisa, seja humano ou animal, era um predador para os duendes. As orelhas de abano escutavam cada som e o nariz pontiagudo fungava por cheiros desconhecidos.  Um leve assobio de Fervilho fez  Touca, Pingado, Florida e Babbo saírem da toca de rato e correrem na direção da bancada.

  Pingado liderava o grupo. Ganhou esse nome quando era pequeno e ficou dias tomando doses de aguardente para provar que era o mais forte do grupo. Era baixo e bem roliço. A barba que uma vez fora loira, agora tinha um aspecto encardido.

  Ao chegar à bancada, Pingado, com uma linha, laçou um grande pote de pepinos em conserva no topo para poderem subir. O primeiro a escalar a enorme bancada foi Touca. Seu nome vinha por nunca atirar a touca vermelha do topo da cabeça. Ela era de seu pai, antes deste ser comido por um besouro. Desde então Touca começou a usar o chapéu do pai (muito maior que seu número) e nunca mais falou com ninguém.

  A segunda a subir foi Florida. Uma linda duende loira e de olhos azuis. Suas orelhas pontudinhas eram seu charme entre os emaranhados cabelos dourados. Adorava trocar todo dia a flor que prendia em sua touca lilás. Poderia parecer ingênua, mas com certeza era uma das mais espertas da comunidade e sempre tivera voz ativa.

  Por último a subir foi Babbo. Ele não tinha sido requisitado para essa missão, pois além de muito velho para tal aventura, seu físico não ajudava, mas como um dos mais sábios e líderes, decidiu mostrar que ainda poderia ajudar os mais novos. Seus cabelos brancos eram bem arrumados dentro da touca pontuda vermelha. Apenas as maçãs do rosto, bem avermelhadas eram vistas de sua face, pois o resto era coberto por uma enorme penugem branca que ia até sua barriga bem inchada. O colete verde parecia que iria explodir.

  Todos no topo, começaram a se dividir. Touca ficou responsável pelas carnes, logo correu rapidamente para buscar lascas de embutidos e do grande pernil que sobrara do jantar dos humanos. Pingado correu para os laticínios, pois não havia nenhum duende que não gostasse de um bom queijo e leite. Florida ficou com os legumes verduras, pois sempre pensava na saúde de todos. Já Babbo, como um bom vivant, foi aos doces e ao vinho.
  Poucos minutos se estenderam até se encontrarem no pote de pepino novamente. Todos com as pequenas sacolas e pequenas garrafas cheias. Foi quando Babbo percebeu:

   - Onde está Fervilho?

  Os duendes começaram a olhar para todos os lados do bistrô procurando o grande amigo, mas nada, foi quando viram um pequeno vulto correr em sua direção entre as louças. Fervilho bufava de cansaço, todo vermelho e suado, segurando a touca, mas não deixando de correr.

   - Roquefort! Roquefort! Roquefort!

 Pingado, ainda sem entender do que se tratava, abriu sua sacola e conferiu o que tinha pego.

  - Mas eu peguei roquefort. Inclusive mais do que provolone...

  Foi quando Florida arregalou os olhos e segurou no antebraço de Pingado.

  - Não é do queijo que ele está falando, Pingado.

  O enorme gato Roquefort pulou na bancada derrubando todas as panelas no chão. A cada passo, o gato branco e cinza lambia os lábios esfomeadamente olhando suas pequenas presas. Os pobres duendes correram cada um para um lado.

  Enquanto Babbo e Florida corriam para se esconder atrás dos panelaços, Pingado e Fervilho puxaram suas pequenas agulhas que usavam de espadas e correram na direção do monstro peludo. A cada pontada nas patas de Roquefort um deles era arremessado para longe. As luzes da lareira iluminavam uma chuva de pratos, nozes, panelas e vinhos voaram pelos ares enquanto a batalha explodia perto do fogão à lenha.

  Pingado tentou um ataque perto do rosto de Roquefort, mas uma patada o derrubou pra dentro do saco de arroz. Foi quando Fervilho se viu encurralado entre o pote de tomate seco e o saco de cebolas. Roquefort avançava vagarosamente preparando o bote. Alí acabava a história de Fervilho, o duende.

  Quando Roquefort deu o pulo para acabar com o sofrimento de Fervilho, algo aconteceu e o pequeno duende pode abrir os olhos mais uma vez. Era Touca que havia saltado das estantes de livro de culinária para as costas do bichano. O pequeno duende parecia um peão de boiadeiro se segurando nos pelos do animal que se contorcia para tirar Touca de cima dele.

Essa foi a deixa para Fervilho se levantar correr até a ajuda de Touca. Pingado também enquanto tirava alguns grãos de arroz da roupa. Os três duendes furavam o animal que chiava de dor e raiva até Babbo e Florida voltarem por trás do grande animal e prenderem sua cauda embaixo de uma enorme panela de guisado.

  Roquefort miava de raiva, puxando o rabo e tentando alcançar os cinco duendes que juntavam a comida para fugirem o quanto antes. Um a um foram descendo pela linha do pote de pepino.  A última a descer foi Florida que quase foi atingida por uma garrafa de vinho que vinha rolando em sua direção pela bancada.

O longo percurso até a toca de rato foi o tempo suficiente para Roquefort se soltar e correr atrás dos pequeninos. As cadeiras voaram por causa do último bote de Roquefort que chegou a enfiar sua enorme pata peluda e cheia de unhas para dentro do buraco, mas sem sucesso de alcançar nenhuma de suas presas. Apenas a alça direita do suspensório de Babbo fora rasgada pelas garras do bichano.

  Os cinco, ofegantes, se entreolharam por segundos em silêncio. Os olhos assustados passavam de um a um até Touca começar a gargalhar. Os outros quatro voltaram seus olhares para ele, ainda incrédulos, mas também caíram na gargalhada juntos do amigo mudo.

  Os duendes voltaram para sua comunidade e foram recebidos com muitas palmas, ovações e assobios, mesmo porque o banquete para a ceia eles haviam conseguido. Agora era a hora de festejar, comer, dançar e, claro, ouvirem mais uma aventura dos duendes do bistrô.
 


                                      Para Maria Célia de Paula Pinto Nazário, onde quer que esteja.



André Bludeni

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