quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Epílogo do Samurai

     Ele respirou fundo ao se sentar de pernas cruzadas. A dor na costela direita lhe incomodava demais. A cada respirada, tinha a sensação de que a pele estava sendo cortada mais uma vez. Pousou a mão no ferimento e a banhou no próprio sangue que escorria com abundância. Os dedos saíram do kimono rasgado em um tom de vermelho brilhante.

  Concentrou-se e olhou para os lados. Precisava entrar em calma e concentração. O vento assoprava pelos bambuzais tocando uma linda melodia de assobios. Já estavam entrando no começo da primavera e logo menos sabia que sua amada esposa iria ficar admirando as sakuras brotarem lindas flores. Era o hobby preferido de sua amada enquanto preparava nikuman para o jantar. Infelizmente não haveria mais esposa entre as cerejas enquanto saboreava os deliciosos pães com recheio de carne de porco. Não mais.

  A dor era latente. A katana estava pousada ao seu lado enquanto o sol começava a se pôr e os bambuzais a assobiar mais. O frio fazia sua feria arder ritmicamente. Enquanto preparava o seu chá de despedida lembrava-se de seu pai e quando esse o ensinou a fazer a bebida do adeus.

  O velho samurai foi sua inspiração para todos os desafios da vida. Era o grande herói do vilarejo, até ele mesmo tomar o posto do pai de ícone. Começou seu treinamento bem cedo, aos cinco anos de idade, e sempre fora considerado o melhor aprendiz da arte marcial de todo o local.

  Em serviço de seu Senhor Feudal, eliminou vários inimigos e adversários em nome da Honra, Respeito, Humildade, Compaixão e Coragem. Lembrou-se quando o pai se foi em missão e nunca mais voltou. Seus companheiros lhe trouxeram a katana do falecido herói e desde então nunca mais a soltou. A arma tornou-se uma extensão de seu braço. Sem ela, estava incompleto.

  Sua respiração estava cada vez mais fraca. O kimono azul já se tornara mais escuro pela quantidade de sangue que havia perdido, talvez por isso sentisse tanto frio. Bebericava mais o chá para se esquentar e tomar coragem de concluir o que deveria ser feito.

  Ele falhou. Deixou seu Senhor Feudal falecer em um ataque surpresa. Falhou em defender seu lar. Falhou ao ver que tudo estava em chamas e o inimigo tomado tudo. Os companheiros, amigos, mestres e aprendizes no chão, mortos...imóveis. Lembrava-se da fúria que sentia ao ver o Samurai Tigre Vermelho degolando aquela pobre criança. Suas katanas dançaram durante um longo tempo e o único som que se ouvia eram os gemidos de força, os gritos de raiva, o estalar do incêndio e o silvar dos metais.

  O ataque de Tigre Vermelho foi dócil, rápido e limpo. Lambeu-lhe a costela fazendo-o sentir o maior frio e medo que jamais sentira. Mas sabia que era necessário esse sacrifício para se aproximar do inimigo e fincar sua lamina na garganta dele. Tigre Vermelho era superior a ele em todos os aspectos: técnica, força, agilidade e concentração. Precisou se sacrificar para concluir seu legado e levar o adversário ao chão. O sangue que jorrava em suas mãos era um troféu de vitória, mas uma vitória triste, pois sabia que havia perdido tudo.

  O chá acabara, logo a hora de finalizar sua missão chegara. Cada movimento que fazia era meticulosamente orquestrado com cautela, concentração e gestos vagarosos. O que sobrara do kimono foi abaixado até o quadril. O dorso tremia de frio e dor e a ferida escorria cada vez mais sangue. Fincou sua katana na terra coberta de neve e colocou três pedras ao seu redor, uma em homenagem a sua amada, uma a seu pai e a outra ao seu senhor.

  Ele precisava terminar o seu Seppuku, terminar a sua vida. Jamais viveria como um Ronin, um homem sem honra, um guerreiro sem senhor. Seu legado havia terminado e ele deveria aceitar isso. Pegou sua wakizashi, uma pequena espada, e, de olhos fechados, com a imagem da esposa o observando entre as cerejeiras, fincou a arma no corte já aberto. Deu um leve gemido de dor, o suficiente para abrir os olhos e criar coragem de continuar e rasgar o resto do ventre, logo abaixo do umbigo.


  O corpo sem vida caiu no solo branco de neve e a poça vermelha foi tingindo o chão em um tom cada vez mais brilhante. Morrera feliz por concluir o seu legado, com honra e respeito. Morrera feliz, pois encontraria mais uma vez sua esposa nas cerejeiras.





André Bludeni

Nenhum comentário:

Postar um comentário