Ele respirou fundo ao se sentar de pernas
cruzadas. A dor na costela direita lhe incomodava demais. A cada respirada,
tinha a sensação de que a pele estava sendo cortada mais uma vez. Pousou a mão
no ferimento e a banhou no próprio sangue que escorria com abundância. Os dedos
saíram do kimono rasgado em um tom de
vermelho brilhante.
Concentrou-se e
olhou para os lados. Precisava entrar em calma e concentração. O vento assoprava
pelos bambuzais tocando uma linda melodia de assobios. Já estavam entrando no
começo da primavera e logo menos sabia que sua amada esposa iria ficar admirando
as sakuras brotarem lindas flores.
Era o hobby preferido de sua amada enquanto preparava nikuman para o jantar. Infelizmente não haveria mais esposa entre
as cerejas enquanto saboreava os deliciosos pães com recheio de carne de porco.
Não mais.
A dor era latente. A
katana estava pousada ao seu lado
enquanto o sol começava a se pôr e os bambuzais a assobiar mais. O frio fazia
sua feria arder ritmicamente. Enquanto preparava o seu chá de despedida
lembrava-se de seu pai e quando esse o ensinou a fazer a bebida do adeus.
O velho samurai foi
sua inspiração para todos os desafios da vida. Era o grande herói do vilarejo,
até ele mesmo tomar o posto do pai de ícone. Começou seu treinamento bem cedo,
aos cinco anos de idade, e sempre fora considerado o melhor aprendiz da arte
marcial de todo o local.
Em serviço de seu
Senhor Feudal, eliminou vários inimigos e adversários em nome da Honra,
Respeito, Humildade, Compaixão e Coragem. Lembrou-se quando o pai se foi em
missão e nunca mais voltou. Seus companheiros lhe trouxeram a katana do falecido herói e desde então
nunca mais a soltou. A arma tornou-se uma extensão de seu braço. Sem ela,
estava incompleto.
Sua respiração
estava cada vez mais fraca. O kimono
azul já se tornara mais escuro pela quantidade de sangue que havia perdido,
talvez por isso sentisse tanto frio. Bebericava mais o chá para se esquentar e
tomar coragem de concluir o que deveria ser feito.
Ele falhou. Deixou
seu Senhor Feudal falecer em um ataque surpresa. Falhou em defender seu lar.
Falhou ao ver que tudo estava em chamas e o inimigo tomado tudo. Os
companheiros, amigos, mestres e aprendizes no chão, mortos...imóveis. Lembrava-se
da fúria que sentia ao ver o Samurai Tigre Vermelho degolando aquela pobre
criança. Suas katanas dançaram
durante um longo tempo e o único som que se ouvia eram os gemidos de força, os
gritos de raiva, o estalar do incêndio e o silvar dos metais.
O ataque de Tigre
Vermelho foi dócil, rápido e limpo. Lambeu-lhe a costela fazendo-o sentir o
maior frio e medo que jamais sentira. Mas sabia que era necessário esse
sacrifício para se aproximar do inimigo e fincar sua lamina na garganta dele.
Tigre Vermelho era superior a ele em todos os aspectos: técnica, força,
agilidade e concentração. Precisou se sacrificar para concluir seu legado e
levar o adversário ao chão. O sangue que jorrava em suas mãos era um troféu de
vitória, mas uma vitória triste, pois sabia que havia perdido tudo.
O chá acabara, logo
a hora de finalizar sua missão chegara. Cada movimento que fazia era
meticulosamente orquestrado com cautela, concentração e gestos vagarosos. O que
sobrara do kimono foi abaixado até
o quadril. O dorso tremia de frio e dor e a ferida escorria cada vez mais
sangue. Fincou sua katana na terra
coberta de neve e colocou três pedras ao seu redor, uma em homenagem a sua
amada, uma a seu pai e a outra ao seu senhor.
Ele precisava terminar
o seu Seppuku, terminar a sua vida.
Jamais viveria como um Ronin, um
homem sem honra, um guerreiro sem senhor. Seu legado havia terminado e ele
deveria aceitar isso. Pegou sua wakizashi,
uma pequena espada, e, de olhos fechados, com a imagem da esposa o observando
entre as cerejeiras, fincou a arma no corte já aberto. Deu um leve gemido de
dor, o suficiente para abrir os olhos e criar coragem de continuar e rasgar o
resto do ventre, logo abaixo do umbigo.
O corpo sem vida
caiu no solo branco de neve e a poça vermelha foi tingindo o chão em um tom
cada vez mais brilhante. Morrera feliz por concluir o seu legado, com honra e
respeito. Morrera feliz, pois encontraria mais uma vez sua esposa nas
cerejeiras.
André Bludeni

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