quinta-feira, 9 de abril de 2015

Coluna Vertebral: O Último Voo do Corvo Rei

  Era um dos últimos dias do mês e o frio começava a dominar a sua cidade. Saiu do trabalho com os olhos cansados, o pescoço dolorido e os ouvidos zunindo, uma microfonia estática dentro do seu próprio cérebro. 

Tudo que ele queria naquele momento era chegar logo em casa, acender um cigarro e desabar em sua cama, e o resto do mundo podia se foder, nada mais faria diferença. Parou para comprar uns dois maços em um boteco no caminho do ponto de ônibus, e enquanto esperava o velho dono da pocilga contar o troco, ficou de olho na velha televisão, com a imagem desfocada, de onde o som saía trêmulo. Um programa sensacionalista onde um gordo com o rosto inchado, vermelho, bradava contra criminosos que haviam acabado de assaltar uma agência bancária. Ele sorriu por um segundo, sorriu porque todo aquele circo se repetia todo santo dia, sempre tinha alguém pra matar e sempre tinha alguém pra morrer naquela cidade. Alguns instantes depois, enquanto já se retirava daquele antro de sujeira e álcool barato, acendia o primeiro cigarro da noite e viu o final da matéria, alguns policiais haviam cercado e matado os vilões do dia, os mocinhos haviam vencido. O obeso apresentador sorria, satisfeito, e ele não sabia bem o porquê, por pior que possam ter sido os pecados de qualquer um daqueles homens, agora estirados no chão, ainda assim, mais sangue havia sido derramado. Apagou o cigarro no chão e resolveu voltar logo para casa, havia esfriado mais ainda. 

  A noite era bonita, apesar de não se ver uma mísera estrela no céu. Ele gostava do clima frio, apesar de adoecer facilmente. Entrou no seu apartamento, abarrotado de coisas que não precisava ter, agora escuro e sem qualquer sinal de vida, não fosse por uma mosca se debatendo contra a janela. Retirou os sapatos logo na entrada, largou suas coisas em cima da mesa e foi espiar a geladeira, onde não havia nada além de uma cerveja aberta, já pela metade, e alguns ovos, que provavelmente não serviriam nem para um trote universitário. 

  Resolveu acender outro cigarro e se sentar perto da janela. A noite já estava formada, e a única luz que entrava no local era a da rua. Abriu a janela e sentiu a primeira golfada do ar gelado, primeiro em seu rosto e depois em seus pulmões, e aquela era uma boa sensação, afinal. Sentou-se no parapeito e deu as primeiras tragadas. Olhou para a rua, onde os carros se travavam, as buzinas soavam alto, mas não o incomodavam. As pessoas seguiam no seu ritmo frenético, pequenas formigas operárias trabalhando loucamente para uma rainha desconhecida, chamada ‘tempo’. Lembrou do noticiário na TV, do sangue escorrendo no chão, o sorriso amarelo do gordo, e aquilo o deixou enjoado. Somada a essas imagens nefastas, a vertigem da paisagem de sua janela o trouxe uma antiga memória. Quando ainda era menino, viu uma garota se atirar de um viaduto, a alguns metros de sua casa. Apesar de muito pequeno, até hoje ele ainda se lembrava do barulho do pancada, o corpo batendo como se fosse oco no chão. A cor vermelha, numa matriz quase escarlate, do sangue que brilhava no sol do meio dia e ele ali, tentando entender porque uma pessoa faria isso. Nunca se esquecera da pequena tatuagem de borboleta que a garota tinha em seu ombro. Aquele fora o último voo daquela borboleta. 

  Já haviam se passado duas horas e sua barriga reclamava. Ele sabia que precisava se alimentar, mas estava muito mais interessado em seguir tragando e observando a paisagem. Da sua janela, o mundo parecia uma obra de Hopper, bucólica e estática, onde o som havia parado por um segundo, e o mundo todo tivesse ficado um pouco mais triste. Pensou em quão vazio era o seu dia-a-dia, pensou nas revistas, jornais e televisões, vendendo uma imagem de felicidade que ninguém poderia encontrar. ‘Glamour’, ‘estilo’, ‘sucesso’, palavras vociferadas diariamente, como um mantra, como se fossem leis imutáveis e necessárias na busca pela simples felicidade. Começou a tentar se lembrar quando havia sido feliz pela última vez, e a dificuldade daquele esforço o chocou. Passou quase uma hora tentando e não conseguia se lembrar com exatidão. Resolveu se focar em memórias afetivas, de tempos mais remotos, mas de lembranças duradouras, que poderiam trazer novamente um pouco de luz àquele quarto escuro. Lembrou-se do sorriso de sua avó, quase que sem dentes, quando lembrou-se dele, no meio de tantas memórias confusas de uma mente dilacerada pela doença. Lembrou-se de como ele mesmo olhava para o pai com orgulho, como venerava aquele super herói que morava na sua própria casa, como ele podia fazer tudo com tanta facilidade, num mundo que ainda parecia tão ameaçador? Lembrou-se, mais de uma vez, das gargalhadas que dava na infância por horas a fio com seu irmão, por qualquer motivo idiota, mesmo que o motivo fosse simplesmente ser um idiota. Como não se lembrar da sua mãe?! Quando tudo parecia turvo, bagunçado e perdido, e os seus abraços paravam o tempo, como se nada de ruim pudesse acontecer a partir dali. Eram tantos momentos deliciosos, que esnobavam o frio daquela janela, a escuridão daquele quarto e o faziam sorrir, quase como se estivesse revivendo-os, naquela madrugada solitária. Viu como era simples ser feliz. Ele não precisava de um carro novo, uma esposa modelo ou ser um ator de novela. E entre ele e a escuridão, não foi ele que saiu voando por aquela janela.





Gale

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