sexta-feira, 24 de abril de 2015

Sr. Armitage e o Poço da Vida

  Ele ficaria por horas dormindo se não tivesse tomado a cutucada na costela. Os olhos se abriram lentamente, mas se acostumaram rápido com o céu púrpura do dia que ainda não havia nascido. O balançar do mar não era a melhor maneira de se acordar, mas depois de dois anos praticamente dentro da água foi forçado a não ligar mais para os enjoos matinais.

  "Rápido Harold! Traga meu café e abra as velas. Estamos mais perto do que imagina.". Lá estava, Sr. Armitage. O velho capitão aparentava ter muito menos idade do que realmente deveria ter. Obviamente as rugas estavam presentes, mas seu porte físico não era a de um velho moribundo. Era bem alto e de ombros largos. Os braços pareciam duas toras de árvores escondidas nas longas mangas azul-marinho do sobretudo desgastado. A pele era mal cuidada e bem queimada de sol, sempre descascando nas maçãs da bochecha que possuíam uma barba branca bem farta. As características mais marcantes do velho eram sua boina preta, a bengala que sempre o cutucava quando fazia algo errado e o olho cego com uma grande cicatriz que o atravessava. Nunca o jovem tivera coragem de perguntar como aquilo acontecera.

  O garoto, recebendo golfadas de vento molhado no rosto, foi até a proa do veleiro com a xícara de café frio na mão. Sr. Armitage observava o horizonte sem piscar, apenas pegou a xícara da mão do garoto e e deu um grande gole. "Eu consigo até sentir o cheiro Harold! Estamos perto!".

  O velho sempre o chamara de Harold, mesmo esse não sendo seu nome, mas ele preferia não contraria. Talvez fosse a idade...talvez a lembrança de alguém querido que não estivesse mais presente. "O Sr. tem certeza? Estamos no meio do nada e a maré está..."
  "Tolo! Não acredita, não é? Você verá, você verá! Coma alguma coisa e vire a estibordo quando terminar seu desjejum .". O velho mostrou um grande sorriso de dentes podres e foi até a popa do Vitória cantarolando a velha música da Sereia e do Leão Marinho, como toda manhã. O jovem sabia que Vitória era o nome do veleiro em homenagem a irmã de Sr. Armitage. "Uma jovem pequena, mas muito forte", como ele praguejava em dias de tempestade.

  Fazia dois anos que o jovem estava a bordo do Vitória com o Sr. Armitage. Depois do incêndio, ele ficara orfão e começou a viver nas ruas sobrevivendo de pequenos furtos e esmolas. Mais das esmolas já que nunca fora forte ou ágil, logo era sempre pego nos seus furtos. Foi numa dessas vezes, enquanto apanhava de três comerciantes no porto local, que ouviu o assobio ensurdecedor de Sr. Armitage. O barulho fez os três homens cessarem a surra no mesmo momento  e darem espaço para o velho levantá-lo do chão e limpar o sangue de seu rosto com a manga do sobretudo. Nunca o tinha visto na região, mas pelo jeito que os homens abaixaram a cabeça, sabia que todos o respeitavam, e muito.Nenhuma palavra foi dita pelo velho, mas o garoto soube, como um aviso, que deveria segui-lo.

  A manhã já estava clara e esquentando quando Sr. Armitage voltou a proa, agora acompanhado de Spooky, um daschund arlequim. O cão era obeso e mal caminhava. Devia ter a mesma idade do que tinha de quilos, mas sempre parecia estar sorrindo e de bom humor com o rabo abanando. Por onde Armitage ia, Spooky se arrastava atrás. O mais curioso era que o cachorro tinha um olho azul, o mesmo olho que Sr. Armitage era cego.

  "Nós chegamos..." a voz rouca do velho saiu quase como um sussurro. "O Poço da Vida.". O jovem não entendeu, pois estavam no meio do alto mar. Sr. Armitage era como um pai para ele. Sempre o tratara bem e ensinara praticamente tudo de como velejar, mas essa história de Poço da Vida ele nunca levara a sério. O velho sempre dizia que esse era o verdadeiro destino e que era lá que a juventude seria reconquistada, mas aquilo não lhe cheirava mais do que lenda de marinheiros.

  "O Poço da Vida, o lugar beijado por Deus. É lá que homens se tornam lendas e histórias são criadas. Uma vez lá e é certeza absoluta que voltará, mas apenas mais uma vez. O Poço traz glória, mas sabedoria para poder saborear realmente a verdadeira juventude.". Pelo menos uma vez ao dia Sr. Armitage citava esse poço e pelo jeito essa era a vez do jovem descobrir se o velho era gagá ou não.

  Spooky colocou sua cabeça para fora do veleiro e deixou suas orelhas escorregarem pelo focinho. Parecia que o cachorro pressentia algo também. "Pare o Vitória!", gritou Armitage cuspindo bolotas de saliva enquanto se apoiava na bengala. O jovem forçou a parada do veleiro e o silêncio se aprofundou no momento. O mundo tinha estacionado. O mar parecia um tapete e nenhum resquício de vento aparecia.
  "3, 2, 1,..." Sr. Armitage parou de contar e aos poucos, em menos de um metro a bombordo, onde Spooky olhava, uma luz verde apareceu no tapete azul. a cada segundo a luz crescia e parecia ficar cada vez mais fosforescente até chegar ao tamanho do veleiro e brilhar como uma estrela.

  O jovem estava boquiaberto com aquilo, não conseguia se expressar. O velho estava certo, o Poço da Vida estava na frente dele. Spooky latia entusiasmado, mas Sr. Armitage apenas abriu um leve sorriso e deu um suspiro satisfeito antes de tirar a boina e coçar a cabeça calva vermelha.

  "Harold, pegue aquele frasco de vidro e o encha com a água do poço, por favor.". O garoto, ainda em choque, todo estabanado foi realizar a ordem do velho. Armitage sentou-se em cima do rolo de corda, cansado, acendeu seu fumo e acariciou a cabeça do fiel companheiro de quatro patas.

  O pote brilhava em um tom verde esmeralda hipnotizando os olhos cor de mel do garoto. Sr. Armitage apenas observava seriamente enquanto fumava seu segundo cigarro. "Vamos, Sr. Armitage. Beba o quanto puder e finalmente poderá voltar a ser jovem como sempre fala! Depois podemos encher mais uma vez esse frasco e as outras canecas e assim podemos vender por um ótimo preço! Conseguiremos bastante dinheiro, reformaremos o Vitória e o senhor poderá velejar como gosta para os locais mais...".

  "Calado, garoto tolo! Me passe o frasco." Sr. Armitage estendeu a mão enrugada com as unhas roídas para alcançar o frasco. "Há muito tempo atrás, logo após a morte de Vitória, meu pai me trouxe até exatamente este mesmo lugar. Enchemos um copo, eu lembro, e ele chorou por horas sem dizer uma palavra. Ele limpou as lágrimas e disse que se minha irmã tivesse aguentado um pouco mais de tempo ele daria aquele copo para ela.".

  Sr. Armitage colocou o frasco no chão e chamou Spooky. "Eu achei que ele fosse dar um grande gole e que navegaríamos por essas águas misteriosas eternamente. Bastava atingirmos uma idade avançada e voltaríamos para cá, mas não, ele não bebeu.". O cão começou a beber a água sedentamente do frasco que estava no chão.

  "Meu pai jogou a água de volta ao mar, me beijou a testa e voltamos para o porto. Nunca mais tocamos no assunto, mas eu havia entendido a lição.". O jovem não sabia se prestava atenção na história ou no cachorro que a cada lambida levada a boca rejuvenescia um ano. "A vida, a juventude, não vale a pena sem ser compartilhada. Meu pai nunca quis a água para ele, a intenção era dá-la para minha irmã para partilharmos juntos uma vida.".
  "Mas...mas.." O jovem gaguejava e olhava Spooky, um filhote, brincar de pegar o próprio rabo em latidos finos.

  "Eu estou velho e cansado. Já vivi o que tive que viver. Já tive minhas felicidades e tristezas e me orgulho de cada uma. Mas eu quero que você aprenda isso também. Eu irei embora um dia, não tardará muito. Spooky te acompanhará até onde ele puder e depois você viverá. Quando chegar a hora, você trará o seu Harold para este mesmo lugar e lhe ensinará o sentido da vida. Na hora certa, quando realmente entender o significado dessa viagem, dessa vida.".

  Sr. Armitage levantou-se e tirou sua boina e a colocou na cabeça do garoto. O beijo na testa foi igual ao que recebeu de se pai em sua infância. No final do dia os três, velho, garoto e filhote, voltaram para o porto sem dizer uma palavra, mas com a lição aprendida.



André Bludeni

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