Ele não se lembrava
quantas vezes havia sentido raiva em sua vida. Lembrava-se pouco da última, a
cabeça zunindo, a vista turva, a promessa de aquilo nunca mais ocorreria. Mas
ele nunca se esqueceria da primeira. A lembrança mais forte era a da primeira vez
em que sua raiva havia tomado o controle, mas com um pequeno esforço, ele
conseguia se lembrar exatamente da primeira vez em que sentiu a raiva. Ele era
uma criança doce, muito tímida, mas extremamente feliz. Havia crescido tendo
muito contato com a mãe, e aquilo o havia tornado muito carinhoso. Essas
lembranças são tão distantes hoje, mas era impossível relembrar daquilo tudo
sem esboçar um sorriso e os olhos se marejarem. Poucas coisas lhe causavam
qualquer tipo de sentimento nos dias atuais, mas aquilo o acertava como uma
pedrada. Voltando à infância, ele havia acabado de completar seus primeiros
anos de pré-primário, numa pequena escola onde todos o conheciam pelo nome e o
tratavam como alguém de suas próprias famílias. Agora era a hora de ir para a escola
de verdade, e com isso, começar a encarar problemas de verdade. O enorme prédio
branco não lhe causava medo, mas não era o local mais adequado para alguém
introvertido sair fazendo amizades. Nos primeiros dias encarou a solidão, mas
aquilo não o incomodava, ele gostava de passar seu tempo sozinho, não
incomodando a ninguém, simplesmente encarando a poeira flutuando pelo ar. Mas
mesmo o mais perfeito equilíbrio pode ser quebrado, e os problemas vieram. Até
hoje ele não sabe o que havia em si próprio que incomodava tanto as outras
crianças. Se era seu sotaque, seu corpo magro, franzino, sua cara engraçada,
nada. Mas as incomodava. No começo eram empurrões e provocações, que se
tornaram socos e pontapés. Ele nada contava para a mãe, não aceitaria que ela se
preocupasse e talvez até derramasse lágrimas por um problema pessoal dele. Mas,
ali ele perceberia que tudo que é ruim, pode piorar.
Mesmo naqueles dias negros havia ainda
pequenos sinais de luz. Apesar da solidão e da dor física, ele vivia seu
primeiro amor. Como todo bom primeiro amor, ele não tinha a menor coragem de se
declarar para a amada. Era um amor puro, que não passava de admiração pela
jovem que se sentava a algumas cadeiras dele. Todos os dias ensaiava no espelho
o que diria a ela, como declararia seu amor, rascunhava poesias e desenhos
inspirados na sua amada, mas nada saía de sua boca, ou de seu bolso. Até que um
dia ela foi até ele. Sorriu e perguntou se estava tudo bem, que ela via que os
meninos implicavam com ele e que ela condenava tudo aquilo. Por alguns segundos
ele não conseguiu ouvir mais nada do que ela falava. Apenas via seus lábios se
mexerem e a luz agraciar os seus cabelos. Aquilo era perfeito. Perfeito demais,
mas era um sol nascendo bem no núcleo da escuridão. Ela o deu um beijo no rosto
e disse para ele encontrá-la num local determinado durante o intervalo. Nunca o
tempo demorou tanto para passar, ele não conseguia se concentrar em
absolutamente nada e ficava vermelho toda vez que pensava em olhar para o lado.
Quando o alarme tocou seu coração disparou junto numa batida descontrolada e
enervante, mas que o encheu de vida. Esperou alguns segundos até que ela fosse
na frente, passou no banheiro, arrumou seus rebeldes cabelos e partiu ao
encontro do seu amor. Mas mal sabia ele que o que ele encontraria o mudaria
para sempre.
Ele demoraria 5 minutos para chegar ao local
do encontro, mas os passos estavam muito adiante dos seus pensamentos, deve ter
chegado em menos de um minuto. Ao chegar, percebeu que havia algo errado. Havia
muita gente, muita mesmo. Aquele deveria ser um local inesquecível, onde o amor
nasceria de vez dentro dele. Mas seria, na verdade, algo bem pior. Desviando
das outras crianças e pré-adolescentes, ele ia procurando. Até que encontrou
seis ou sete garotos, daqueles que vinham o importunando por semanas, juntos.
Todos eles sorriam e imediatamente começaram a gritar muito. Rapidamente foi
cercado e pode ver que dentre todas as pessoas que se preparavam para assistir
àquele ‘espetáculo’ estava sua amada. E ela ria muito, feliz por seu plano ter
dado tão certo. Aquele otário aprenderia que ele era demais para ele. Foram
socos, chutes, cusparadas, insultos e humilhações. A história que haviam lhe
contado que existe honra nas brigas, que não se bate num homem no chão, era uma
enorme mentira. A agressão pode ter durado segundos, minutos, horas, ele nunca
saberia dizer. A partir do momento em que ele olhou nos olhos de sua amada e
viu nada além de maldade, nada mais importava.
-Levanta, idiota. –
falou maldosamente o maior dos garotos.
Ele não tinha vontade de levantar. Queria
ficar deitado ali, no meio de toda aquele gente, até a fim dos dias. As dores
no corpo não eram nada perto das feridas que haviam se aberto em seu interior.
O orgulho massacrado, a inocência estuprada e felicidade, dizimada. Pensou na
sua mãe o abraçando, dizendo que ele seria um grande homem e que um teria seus
próprios filhos, e que eles seriam tão bons quanto ele. E começou a chorar.
Sentia falta dela, mas acima de tudo, sentia falta de si mesmo. O doce menino
havia acabado de morrer naquele frio chão de uma tarde em um dia qualquer. Os
garotos começaram a rir e fazer todo o tipo de piada. Foi ali, naquele momento,
que uma nova pessoa nasceu. No ponto mais escuro, mais humilhante de sua vida,
uma faísca apareceu. Nem mesmo ele sabia que tinha aquilo dentro de si, uma
raiva tão grande, tão pesada, ensurdecedora. O idiota havia se levantado.
Olhou nos olhos do maior dos garotos de
maneira impiedosa. Ele não sentia nada além de raiva. A mesma raiva que
sentiria tantas vezes nos anos seguintes. Ele não encarava mais um garoto que
implicava com o tímido menino mais novo. Ele encarava seus próprios demônios. E
o continuaria encarando pelo resto de sua vida. Ele havia ouvido certa vez que
o primeiro murro que tomamos nos acorda para a vida. Ele nos mostra que não
somos tão frágeis quanto imaginamos, que não somos feitos de vidro. Mas ele
nunca havia pensado no oposto, nunca havia se preparado para agredir alguém. As
pessoas gritavam, o garoto se preparava para mais uma sessão de humilhação
quando tudo aconteceu. Era como se os planetas tivessem se alinhado, o sangue
fervilhando, a raiva o ensurdecendo, os músculos se contraindo. O primeiro soco
atordoou o alvo, mas não o derrubou, o segundo, muito mais preciso fez seu
efeito. Entre o terceiro e o décimo, poucos segundos se passaram. O agora
‘alvo’ já estava caído, desacordado. O garoto que havia dado um beijo na mãe
pela manhã e saído de casa sorrindo agora sentia os dentes de um outro garoto
amoleceram em contato com os ossos de sua mão. Ninguém mais gritava, todos
assistiam, estáticos, a um Golias massacrado, inerte. Sentou-se no chão e olhou
a mão, ensangüentada. Havia uma grande corte, e não sabia diferenciar de quem
havia mais sangue ali, se seria o seu, ou o do outro pobre coitado. E apesar de
tudo, sentia-se pior do que antes.
Mais de dez anos depois, olha pela janela e
tenta pensar no que aconteceu com o outro garoto. Não só ele, mas todos os
outros, que haviam passado pela sua vida e sido vítimas de sua raiva. Ele
sempre creditava a sua sobrevivência a todo esse rancor que tinha dentro de si,
que aquilo havia salvado sua pele em inúmeras ocasiões. Mas ao olhar uma velha
foto num porta retrato, viu-se ainda pequeno, com sua mãe e irmão. E ele
sorria. De uma maneira tão verdadeira, tão simples, inocente. Ele nunca mais
havia sorrido daquela forma. Quando deu o primeiro soco de sua vida, quando
liberou pela primeira vez toda a raiva que sentia dentro de si, numa explosão, ele
via do outro lado seus demônios, o encarando. Mas hoje ele sabe que ele estava
vendo a si mesmo ali. Nada que ele faça hoje vai trazer de volta as pessoas que
a raiva tirou de sua vida, nem curar as cicatrizes que deixou e ganhou no
caminho. Mas agora ele pode colocar os demônios para dormir, dar uma pouco de
descanso para eles. Ele cresceu, tornou-se o homem que um dia sua mãe prometera
que se tornaria. E todo o vazio que se formou dentro de si, agora vai ser
preenchido por paz, não mais raiva. Mas ele sempre irá viver lembrando-se dos
seus próprios demônios, a cada vez que se olhar no espelho. As cicatrizes nunca
irão sumir.
Guilherme Gale

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