segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Coluna Vertebral: Mais Uma Vírgula

Num vasto oceano de dias iguais, qualquer acontecimento que fugia do corriqueiro se tornava gigante. Aquele seria mais um dia tosco de trabalho, bateria cartão, cumprimentaria a todos de maneira vazia, ou seja, um dia normal. Acordou e encarou o teto por alguns minutos, pensando se ainda havia a motivação necessária para encarar esse roteiro mais uma vez, ou se esse seria o dia de pular logo da janela e acabar com tudo:

-Vou poupar o trabalho do pessoal da limpeza. – Murmurou.

E num ímpeto absoluto, retirando forças de onde não havia mais nada, levantou-se rapidamente da cama, dirigindo-se ao banheiro. Ao entrar, o espelho lhe reservava uma agradável surpresa. Não foi a primeira coisa que notou, já que todo o ritual mecânico do seu amanhecer poderia ser feito por um cego, de tão repetitivo, mas quando notou, deixou a escova cair, mesmo com a boca já toda cheia da insossa pasta. Seu rosto havia se tornado uma manifestação cadavérica do que já havia sido.

Não só o rosto, mas todo o corpo. Era como se toda a carne de seu corpo tivesse sumido subitamente, e a pele tivesse se agarrado aos ossos de maneira abrupta, seca, desesperada. Não se sentia mal, pelo contrário, sentia-se mais leve (obviamente), como se visse as coisas de maneira mais clara. O lado ruim é que nunca havia se visto de maneira tão detestável. Como todo bom homem comum, nunca havia tido grandes características estéticas, sempre havia se visto no padrão, porém, naquele exato momento, ele era alguém horrível, uma visão angustiante do resto do que havia sido um homem. Depois de todas essas conclusões, percebeu-se atrasado, colocou sua roupa, escolheu uma gravata brega que ‘destacava seus olhos’ e seguiu rumo ao trabalho. 

Ele adorava o primeiro encontro do dia, no elevador, com a vizinha do andar de baixo. A velha gorda era mais irritante do que sua gravata brega, porém ela já lhe dava a sua dose diária de asco, e sempre conseguia abafar qualquer sinal de bom humor que se desenhava no seu dia. E mesmo assim ele adorava esses encontros. A grosseria da velha o acordava para a vida, ela era real, uma das únicas pessoas que o fazia sentir algo, mesmo que fosse raiva. Porém, dessa vez, a velha não falou nada. Não reclamou do tempo, do barulho no prédio, da porra da goteira na porra da sala dela, nada. E isso o transtornou de tal forma que ele precisava agir, perguntou à velha sobre como ia o seu dia:

-Bem, muito bem. – disse a velha desviando o olhar.

Eis que ele percebeu, ser um saco de ossos ambulante poderia ser interessante.
O porteiro do trabalho não lhe disse "bom dia". O chefe não reclamou do atraso, e ninguém lhe passou nenhuma papelada. Era um sonho. Não importava se as pessoas tinham dó, nojo, ou qualquer outro "sentimento" em relação à sua nova aparência, mas sim que pela primeira vez em sua vida, ele conseguia ser invisível, mas com a sua própria importância. Levou aquele dia como se fosse o melhor de sua vida. Pediu para sair mais cedo do trabalho, se aventurou na noite, quebrou a cara, tomou um senhor porre sem pagar nem um tostão e voltou para casa feliz. Ser invisível tinha suas vantagens.

Acordou no dia seguinte deitado no chão, babando no tapete. Não tinha a menor pressa para se levantar e se preparar para o trabalho, o cadáver poderia chegar a hora que quisesse, podia fazer o que quisesse. Nem a ressaca o incomodava, ele a considerava um preço justo pelo melhor dia de sua porcaria de vida. Até o espelho quebrar o seu encanto e revelar que ele havia voltado à sua modorrenta forma normal. Os olhos voltavam a se esconder atrás da cara cansada, os braços haviam perdido sua aflição explícita com os ossos pontudos tentando rasgar a pele, e as costelas haviam voltado para dentro daquele corpo que ele tanto detestava. Tudo havia acabado e não havia força nem para se lamentar, estava atrasado e esse era o fim das regalias. A velha voltava a reclamar, o chefe voltou a notar os atrasos e o trabalho voltou a acumular. E ali sentado, escondido atrás de uma pilha de papel, se lamentou. Há muito tempo não ficava abatido, havia se acostumado a viver na inércia dos seus dias, mas aquilo tudo era muito decepcionante. Do dia para a noite ele havia se tornado numa sombra, que podia se locomover nos espaços deixados pelas pessoas, esses pequenos atalhos que nos esquecemos de usar quando seguimos esse script programado que chamamos de vida. E na mesma velocidade que subiu, desceu, havia voltado a ser uma mera vírgula num texto onde os protagonistas eram as palavras.




Guilherme Gale

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